Jorge Moreira Leonardo

Carta de uma desconhecida (II)

07 de Março de 2024


O meu caro senhor ia entrando na pastelaria mas algo o fez reparar em mim. Talvez a forma triste como eu olhava os doces na montra, associada à modéstia das minhas roupinhas, o convenceram que, doces, não eram frequentes nas minhas pobres refeições.

Perguntou-me então: - Queres um doce?

Não respondi. Nem foi preciso. Os meus olhinhos, responderam. Deu-me a mão e entrámos na pastelaria. Ainda o balconista não tinha aberto as portinholas da montra, minha mãe decerto alertada pela amiga, entrou na pastelaria até um quanto angustiada. E zangou-se comigo, talvez convencida de que eu assumira a atitude para ela indesculpável de ter pedido ao senhor para me oferecer um doce.

- Deixa esse senhor em paz!.

Então o meu caro senhor tranquilizou-a dizendo: - Fui eu que ofereci. Não me retire a felicidade de ver esta criança comer um doce! Minha mãe acedeu, conformada e agradeceu.

Saboreei-o em pequenas dentadinhas apesar das recomendações de minha mãe para que me despachasse.

Quando estávamos de saída o balconista chamou minha mãe e entregou-lhe um pequeno pacote, com doces. Minha mãe voltou atrás, dirigiu-se à mesa onde o caro senhor saboreava o seu café e agradeceu. Pois era evidente que a iniciativa partira de si.

É-lhe talvez difícil acreditar, mas a criança que saiu daquela pastelaria, não era a mesma que entrou. Mais do que o doce que comeu, e os que lanchou acompanhados de umas chávenas de chá, na companhia da mãe, trazia consigo algo de novo: Esperança. Afinal havia alguém neste mundo que entendia que ela também era merecedora de comer um doce. Já adulta, possuidora de uma razoável Cultura, devoradora de bons livros, li de Stefan Zweig um livro de título “Confusão de Sentimentos” (hoje já não confunde) em que o autor cita um momento análogo vivido pelo protagonista da história e até que terá sido definido pelo escritor Sthendal.

Vou poupá-lo ao relato integral do que foi a minha vida de então para cá. Vou citar apenas um acontecimento também muito relevante.

Nesse mesmo ano entrei para a Instrução Primária. Sabia do contributo da instrução para se conseguir algo na vida. Logo, dediquei-me com afinco ao estudo. Depressa notei que era mais “adulta” que o comum das outras meninas. Consequência da dureza da minha vida. Concluí a Instrução primária com distinção.

Um dia estava só em casa como habitualmente, quando senti que alguém batia à porta. Respeitando as recomendações de minha mãe, abri o pequeno postigo. Vi na minha frente um sr. de aspecto simpático.

Perguntou-me: - Ainda mora aqui uma srª. Maria da Luz?

- Mora, sim, respondi. É minha mãe. Mas só chega a casa depois das seis horas. Percebi que se emocionou.

Quando minha mãe chegou e lhe contei o sucedido e fiz a descrição possível da pessoa, percebi que ficou transtornada. Pouco depois das seis horas, novas pancadinhas na porta. Desta vez foi minha mãe que atendeu.

Escutei, perplexa, este diálogo: - Que pretendes? Disse minha mãe com uma agressividade, que nunca lhe conheci. Contrastando com esse tom de voz, o homem respondeu com grande serenidade: - Venho tentar emendar um mal para o qual contribuí, se é que ainda venho a tempo. - Entra! disse minha mãe, mantendo o tom agressivo. Não vamos discutir isso à porta. Era meu pai. 

O meu caro senhor ia entrando na pastelaria mas algo o fez reparar em mim. Talvez a forma triste como eu olhava os doces na montra, associada à modéstia das minhas roupinhas, o convenceram que, doces, não eram frequentes nas minhas pobres refeições.

Perguntou-me então: - Queres um doce?

Não respondi. Nem foi preciso. Os meus olhin…





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