“E então olhei à minha volta / Vi tanta esperança andar à solta /
Que não hesitei / E os hinos que cantei /
Foram frutos do meu coração / Feitos de alegria e de paixão”
José Mário Branco, Eu Vim de Longe - Ser Solidário, 1982.
Este texto é certamente um dos mais difíceis de escrever, dado o seu cariz pessoal e a emoção que me desperta o atual contexto de desvalorização das conquistas de Abril.
Sou filha da madrugada, dizem daqueles que nasceram antes do 25 de Abril de 1974. Mas sinto-me filha da liberdade. Trago Abril no sangue e um cravo tatuado no braço, para que nunca me esqueça do valor da liberdade e de todos aqueles que por ela lutaram.
Lembro-me do meu primeiro 1.º de Maio, em 1974… às cavalitas do meu pai, a delirar com aquela multidão de gente feliz. Do “alto” dos meus três anos e oito meses aprendi naquele dia o significado das palavras liberdade, alegria e esperança.
Senti a incerteza do futuro, ensombrado pela guerra colonial – a angústia de não saber se o teu pai vai morrer em combate, ou se o teu tio vai ser preso por tentar “dar o salto” para outro país. Na escola, ouvi o testemunho dos presos políticos; andei de mão dada com a Laura, cuja deficiência foi causada por uma agressão brutal da PIDE à sua mãe durante a gravidez. Todos os dias 23 de abril, dos cinco aos 10 anos, fiz cravos de papel para distribuir nas ruas de Lisboa e, aproveitando o mote, falar das conquistas da revolução.
Por todos os que morreram na guerra colonial, por todos os torturados pela polícia política, por todos os que foram calados, censurados, oprimidos, trago Abril no sangue e um cravo tatuado no braço.
Abril acabou com uma ditadura, pôs fim a uma guerra, libertou povos do jugo do colonialismo, trouxe liberdade também aos portugueses. É certo, criou muitas expetativas ainda por concretizar. Mas cumpriu a sua maior promessa: a democracia. É um regime em construção, com avanços, recuos, emendas, debilidades e (muitas) forças. Importa relembrar sempre “aquele dia inicial inteiro e limpo” que está na génese de muitas conquistas. Por isso, trago Abril no sangue e um cravo tatuado no braço.
Celebrar Abril é, todos os dias, lutar contra a desigualdade, a injustiça, a pobreza, garantindo que os falsos profetas não usam as fragilidades da democracia como argumento para nos impedir de prosseguir. É defender o coletivo contra a lógica do “cada um por si”, tão cara ao discurso da extrema direita e dos liberais. Afinal, foi o coletivo que fez a revolução.
Não podemos jamais esquecer “o que andámos para aqui chegar”: celebremos Abril com alegria, esperança e a convicção de que ainda há muitas batalhas por travar.