No dia 17 de Maio p. p. o Presidente do Chega (CH), criticando, na Assembleia da República (AR), o prazo de 10 anos previsto para a construção do aeroporto em Alcochete, argumentou que o aeroporto de Istambul foi construído em 5 anos e que «os turcos não são propriamente conhecidos por ser o povo mais trabalhador do mundo».
Quase todas as bancadas consideraram esta intervenção injuriosa para o povo turco e o BE defendeu que não deve haver espaço no debate democrático na AR para «atribuir características e estereótipos a um povo», ao que o Presidente da AR respondeu (pasme-se!): «o debate democrático é cada um poder exprimir-se exactamente como quer fazê-lo».
A líder parlamentar do PS pediu depois a palavra para perguntar: «se uma determinada bancada disser que uma (…) raça ou etnia é mais burra ou preguiçosa também pode?».
A resposta do Presidente da AR – aplaudido, de pé, pelo grupo parlamentar do CH – foi (pasme-se mais ainda): «No meu entender, pode. A liberdade de expressão está constitucionalmente consagrada».
O art. 99º, nº 3, do Regimento da AR (RegAR) dispõe que um deputado, no uso da palavra, «é advertido pelo Presidente da Assembleia quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra».
Aos jornalistas Aguiar-Branco disse que entende que esta norma do RegAR só tem a ver «com injúria e difamação (…) a outro deputado», que a «Constituição proíbe organizações fascistas e racistas», mas «não proíbe expressões individuais de alguém em relação ao fascismo ou ao racismo», que não censura as intervenções dos deputados e que, se, por algum deputado, «no exercício (…) da liberdade de expressão, for cometido um crime, o Ministério Público tem condições para accionar uma acção penal».
Um prestigiado advogado opinou que, cabendo ao Presidente da AR, à luz do dito art. 89º, nº 3 do RegAR, «decidir se pretende ou não interromper um deputado», trata-se de «uma deliberação subjectiva e variável».[1]
Aceito que tal decisão é «subjectiva e variável» mas tenho para mim que essas subjectividade e variabilidade não dependem tanto das personalidades e dos estilos dos Presidentes da AR quanto dependem do seu posicionamento político…
O CH elegeu o seu primeiro deputado em 2019 e a AR teve, entretanto, dois Presidentes, ambos do PS, rotulados pelos media e pela maioria dos portugueses como de esquerda, rótulo de que eu, em parte, discordo porque as políticas económicas e sociais do PS têm sido muito semelhantes às dos partidos chamados de direita.
Reconheço, porém, que aqueles dois Presidentes da AR tentaram, nos últimos 5 anos, impedir que o CH utilizasse o Parlamento como um instrumento de legitimação e de amplificação dos seus discursos de incitamento ao ódio, ao racismo e à xenofobia…
E reconheço que estes recentes e lamentáveis acontecimentos indiciam que o actual Presidente da AR encara com tolerância as intervenções dos deputados do CH racistas, xenófobas e ofensivas dos valores consagrados na Constituição…
Sei que reputados constitucionalistas sustentam que a Constituição, embora proíba as organizações fascistas, permite a defesa de «ideias fascistas no exercício da liberdade de expressão individual»[2] e que «exclui qualquer delito de opinião, mesmo quando se trate de opiniões que se traduzam em ideologias ou posições anticonstitucionais».[3]
São interpretações juridicamente válidas mas politicamente conflituantes com os inquietantes sinais dos tempos que vivemos e com os erros do passado cujas lições devíamos ter aprendido para não os repetirmos.
A História mostra que a tolerância para com os inimigos da liberdade abriu-lhes muitas vezes o caminho para o derrube das democracias.
Hoje não há, ou são raras, por razões óbvias, organizações fascistas que se assumam explicitamente como tais.
Apresentam-se como partidos conservadores e/ou nacionalistas – que são, na verdade, neofascistas ou fascizantes – que, como o CH, com o seu populismo e a sua campanha de desacreditação dos órgãos de soberania visa a fragilização das instituições democráticas e uma deriva autoritária.
A nossa Constituição não deixa, assim, que a democracia portuguesa se defenda aplicando o lema de Saint-Just, o revolucionário francês do século XVIII que sustentava, a meu ver com razão, que não devia haver «nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade»…
Os portugueses, dos quais 8 milhões não votaram no CH, esperam, pelo menos, que Aguiar-Branco não se furte a exercer as competências que o RegAR lhe confere, advertindo e, se necessário, retirando, a palavra aos deputados cujo discurso incite ao ódio, seja injurioso ou ofensivo de outros deputados, da dignidade da AR, de minorias e de outros povos…
[1] FRANCISCO TEIXEIRA DA MOTA, Público, 18.05.2024.
[2] J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, I Vol., pp. 648 - 649.
[3] Idem, ibidem, p. 575.