José Henrique Martins, antes de entrar em casa, abriu a portinhola do porta-cartas e retirou os envelopes que o carteiro distribuíra durante o seu habitual percurso. Contendo facturas dos diferentes consumos, extractos bancários, muita publicidade e entre eles um estranho envelope.
Olhou o remetente e mais estranho lhe pareceu: Fernanda Maria da Luz Sousa – Rue de l’Eglise, 97-D Pari – 2605-835. Entrou em casa e começou a ler.
Meu caro senhor! O episódio que lhe vou relatar, aconteceu há mais de quarenta anos. Não acredito que se recorde e estou convencida que já no dia seguinte o tenha esquecido. Pois pode crer que eu nunca esqueci e nunca esquecerei, pois teve uma influência decisiva na minha vida. O caro senhor quando, lhe relatar o que para si foi um simples gesto, talvez até frequente no decurso da sua vida e do qual nem se recorda, pensará decerto como possa ter sido de tal transcendência na vida de alguém. Mas vamos aos factos.
Sou filha de uma mãe que quando nasci era solteira e que vivera um acto de insensatez com um soldado do Continente (assim eram conhecidos os soldados que vieram para a nossa terra no decurso da segunda guerra mundial) que, mal acabou a Guerra regressou à sua terra e, embora prometendo voltar, nunca mais deu notícias.
Nesse tempo ser filha de um soldado do Continente, e de mãe solteira, era algo desprezível e minha mãe foi repudiada pela família e até por algumas amigas.
Já antes desse momento, minha mãe trabalhava como engomadeira numa fábrica de bordados. Trabalho extenuante e miseravelmente pago. E ainda trazia para casa uns maços com que queimava as pestanas bordando e assim acrescentar mais uns magros escudos ao mísero salário.
Saía de casa de manhã, levando consigo um modesto lanche e deixando outro para mim. Recomendava-me que não abrisse a porta a estranhos, nem tampouco a janela, pois esta ficava a uns escassos 90 centímetros do ladrilho. Tal a modéstia da nossa casa. Se eu quisesse distrair um pouco que o fizesse através do minúsculo postigo utilizando um pequeno banco, de onde observava os miúdos brincando. Tanto desejava ir brincar com eles, mas isso só era permitido aos rapazes. As raparigas ficavam em casa.
Minha mãe voltava depois das seis horas e trazia consigo as modestas compras com que preparava a não menos modesta refeição que nos servia de jantar. Vivíamos as duas numa total desesperança.
Um dia em que saí com minha mãe, ela encontrou uma colega de trabalho e pararam um pouco de conversa. Por coincidência que, sempre considerei feliz, em frente à montra de uma pastelaria. Fiquei olhando os apetitosos bolos, com o humilhante conformismo que as crianças pobres de então assumiam: aqueles doces são para meninos e meninas de famílias ricas.
Doces na minha mesa, apenas o folar pela Páscoa e o bolo-rei pelo Natal que a empresa de bordados oferecia, com atitude altaneira, reunindo as trabalhadoras em fila, e convencida que assim atenuava a injustiça do magro salário.