Carlos Frayão

Uma iniciativa legislativa de «aprofundamento da autonomia»

01 de Junho de 2023


A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (ALRAA) aprovou, em nome do «aprofundamento da autonomia», uma Anteproposta de Lei de Alteração à Lei Eleitoral para o Parlamento Europeu (PE) que prevê a extinção do círculo eleitoral único pelo qual os 27 eurodeputados portugueses têm sido eleitos e a criação de três novos círculos eleitorais – Continente, Região Autónoma dos Açores (RAA) e Região Autónoma da Madeira (RAM) – com cada Região Autónoma a eleger dois deputados.

A Exposição de Motivos do diploma aduz, em síntese, que a Bélgica, a Irlanda, a Itália e a Polónia têm círculos eleitorais regionais para o PE e que «a presença de eleitos oriundos das regiões insulares e ultraperiféricas de Portugal» contribuirá para «garantir (…) a presença (…) das nossas legítimas preocupações e necessidades» no PE.

Um deputado regional do PS surpreendeu-me ao afirmar que a «lógica» deste diploma é «consistente» com a antecipação de uma «provável regionalização do país»…

Li e reli esta Anteproposta de Lei e não consigo ver nela senão uma iniciativa legislativa superficial, incoerente, desequilibrada e, porventura, inexequível, porque não será, provavelmente, aprovada na Assembleia da República (AR)...

Superficial, porque simplifica um tema complexo.

Incoerente, porque o art. 6º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) dispõe que o Estado português «é uno e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular», o que significa que o Estado português, apesar de integrar a RAA e a RAM, não é nem um Estado Regional nem um Estado Unitário e Regional.

A concepção unitária do Estado consagrada na CRP decorre, segundo os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, de a RAA e a RAM abrangerem uma pequena parte do território nacional, de o Continente não constituir, nem poder constituir, uma região autónoma – não podendo também ser dividido em regiões autónomas – e ainda de a RAA e a RAM não possuírem autonomia constituinte, porque não podem, só por si, alterar o seu estatuto, que é da competência exclusiva da AR.

É verdade que a instituição de regiões no Continente é um imperativo constitucional (art. 255º da CRP), mas a sua concretização é incerta: depende dos resultados de um referendo obrigatório (art. 256º da CRP) e, no único referendo que se realizou, em 1998, sobre a matéria, 60,67% dos portugueses votaram contra a regionalização…

Em qualquer caso, se e quando forem criadas, as regiões no Continente não passarão de regiões administrativas, com meros poderes de «direcção de serviços públicos e tarefas de coordenação e apoio à acção dos municípios» (art. 257º da CRP), sem a autonomia político-administrativa das Regiões Autónomas.

Finalmente, o diploma é desequilibrado porque prevê que a RAA e a RAM, com apenas 483.097 eleitores (5,14% dos eleitores de todo o país) elejam 4 eurodeputados, ou seja, quase 15%, dos 27 deputados que Portugal tem o direito de eleger para o PE, fazendo, assim, tábua rasa da regra da proporcionalidade que deve presidir à criação de quaisquer círculos eleitorais.   

O diploma, na sua Exposição de Motivos, reconhece, no entanto, que na maioria dos Estados membros da UE vigora «o círculo eleitoral único» (inclusive, acrescento eu, em Estados como Espanha e França, divididos em dezenas de regiões e comunidades autónomas, algumas delas também insulares e ultraperiféricas).

Desde 1986, ano em que Portugal aderiu à CEE, realizaram-se 8 eleições para o PE que elegeram 13 eurodeputados oriundos da RAA: 7 do PSD em 1987, 1989, 1994, 2004 e 2014; e 6 do PS em 1989, 1999, 2004, 2009, 2014 e 1019.

Não será, assim, por não ter existido um círculo eleitoral da RAA para o PE que os 13 eurodeputados dela oriundos, eleitos ao longo dos últimos 36 anos, não terão contribuído para garantir «a presença das nossas legítimas preocupações e necessidades» no PE…

Por último e não menos importante: a redução, prevista nesta Anteproposta de Lei, de 27 para 23, dos candidatos do Continente a eurodeputados, provocaria distorções na aplicação do método proporcional de Hondt que poderiam prejudicar ou anular a possibilidade de os partidos com expressão eleitoral mais reduzida continuarem a eleger deputados para o PE. 

 

O autor não segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990

A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (ALRAA) aprovou, em nome do «aprofundamento da autonomia», uma Anteproposta de Lei de Alteração à Lei Eleitoral para o Parlamento Europeu (PE) que prevê a extinção do círculo eleitoral único pelo qual os 27 eurodeputados portugueses têm sido eleito…





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