Jorge Moreira Leonardo

O Crime da Rua Direita (VI)

24 de Maio de 2023


O Adjunto Mendes não andava satisfeito. Tinha sido ridicularizado pelo chefe diante de estranhos. E nem se podia queixar. Não fora ele que dera o pau para as colheres ao manifestar de maneira tão leviana a sua inexperiência? Não sabia ele que o chefe, pesasse embora a sua reconhecida competência, adquirida durante cerca de trinta anos em diversas esquadras, algumas das quais em zonas de elevado grau de criminalidade, era do tipo gabarolas e que nunca perdia a oportunidade de se exibir? Não foi ele inclusivé que o apelidou de Sherlok Holmes de trazer por casa? Não valia a pena chorar sobre o leite derramado, nem tampouco responder à ironia dos colegas que, uma vez por outra, lhe diziam, imitando o ficcional detective: elementar, Watson, elementar. Para se reabilitar só havia uma coisa a fazer: encontrar uma solução que fizesse sair a investigação do impasse em que se encontrava, passados já quase oito dias.

Era evidente que ele elegera o caixa como principal suspeito. O chefe bem que lhe recomendava a velha máxima: cuidado com as primeiras evidências, geralmente são falsas. Só que neste caso particular, e, em seu entender, a velha máxima não se aplicava. O outro suspeito, o gerente - e apenas por possuir as chaves - tinha um alibi seguro e já confirmado por vários testemunhos. Quem mais? Um assaltante fortuito? Como fecharia a porta após ter cometido o crime e para quê? E qual a vantagem em simular o suicídio? Definitivamente, não.             

Decidiu, então, rever todos os elementos que envolvessem o seu suspeito não só os conseguidos durante a investigação mas também aqueles que eram apenas resultado da sua observação pessoal e que não comunicara ainda ao chefe, não por deslealdade, mas para obviar novo fiasco. Sentia que cada um dos factos isolados tinham fraco significado, mas, se conseguisse obter entre eles um traço comum, talvez fosse possível arquitectar algo de mais consistente. Começou a recordá-los pela seguinte ordem:

- Na noite do crime teve a nítida sensação que já o vira antes - o que não tinha nada de anormal  vivendo na mesma pequena cidade - só que numa  situação que lhe causara, no  momento, alguma estranheza. Porém, não se recordava quando, onde e nem o porquê;

- Ainda na mesma noite reparou que ele, ao puxar do bolso direito o maço de cigarros, trouxe juntamente a ponta dum barbante que se apressou a esconder lançando à sua volta um olhar desconfiado;       

- Nem por um momento entrou na sala onde se encontrava o cadáver, mas isso podia ser por fobia;

- O paquete afirmou, no seu depoimento, que a caixa com os apetrechos que utilizava na preparação das encomendas postais, entre os quais se contava barbante, não estava no lugar onde a tinha deixado;

- Na Pastelaria, tinha perguntado as horas. Porquê? Para que quando os empregados fossem interrogados estivessem habilitados a confirmar?

- O relatório dos guardas encarregados de confirmar os alibis e de obterem algumas informações sobre a vida dos empregados, citava a esposa como pessoa com um estilo de vida acima das posses do casal. Aliás, durante o funeral, a que teve de assistir a pedido do chefe, reparou que, enquanto o marido usava um modesto fatinho já a pedir reforma, ela que não era exactamente uma beleza, mas também não era nada de desprezar (apresentava até um certo porte atlético, contrastando com o marido, meio lingrinhas) estava vestida com um certo requinte.

Notou-lhe até um ar pedante e quando o marido lhe segredou qualquer coisa ao ouvido, ela respondeu com alguma irritação e mesmo desdém.

Quanto a falhas na investigação, anotou:

- Não se sabia como fora conseguida a corda em que a vítima apareceu enforcada;

- Tampouco se pensou como seria possível a um só homem, para mais sem grande físico, içar um corpo com cerca de oitenta quilos;

A arma do crime continuava sem aparecer;

- O balanço ao “Caixa” seria mesmo rotina ou a vítima teve alguma razão especial para o exigir?

- As hipóteses de movimentar a porta sem chaves não foram esgotadas. Ademais aquela piada do chefe na noite do crime - só se foi pela ranhura do porta-cartas! - martelava-lhe o crânio. E porque não? Obviamente que o assassino não poderia fugir por lá, mas já não era de desprezar a ideia de a ter utilizado para fechar a porta. O gerente não estranhara o facto de as ter aberto apenas com uma volta das chaves?

- Durante a recolha de impressões digitais, verificou-se que o porta-chaves - em cabedal - da vítima estava completamente limpo. Nem as do próprio utilizador. Contudo havia algo de difícil explicação. O escritório encerrava às 17 horas, pelo que ele só terá ficado a sós com o chefe a partir das 17,05 (tempo mínimo aceitável para os colegas abandonarem as instalações) e até cerca das 17,20, hora a que entrara na Pastelaria. Como seria possível abater alguém com uma paulada; arrastá-lo para outra sala; improvisar uma forca e depois içá-lo, em tão curto espaço de tempo? E esse lapso de tempo seria suficiente para efectuar um balanço? Finalmente - o enigma dos enigmas - como fechara a porta? Ou teria ele a sagacidade para abater o chefe com a paulada, vir à Pastelaria para obter um alibi e depois voltar ao escritório já então com tempo para concluir o trabalho? Na entrada e saída terá utilizado o porta-chaves do chefe e, quando se apercebeu que, por descuido, deixara lá as impressões digitais, limpou-o, o que explica a intrigante inexistência daquelas marcas. Mas como teria içado o corpo sozinho? Um cúmplice? A própria mulher?

Só havia uma maneira de esclarecer estas dúvidas: voltar à cena do crime. Passou pela secretária do colega Antunes e pediu-lhe que informasse o chefe – ausente naquele momento - que tinha necessidade de sair mas não explicou o motivo.

O Adjunto Mendes não andava satisfeito. Tinha sido ridicularizado pelo chefe diante de estranhos. E nem se podia queixar. Não fora ele que dera o pau para as colheres ao manifestar de maneira tão leviana a sua inexperiência? Não sabia ele que o chefe, pesasse embora a sua reconhecida competência, adquirida durante cerca de trinta anos em diversas…





Para continuar a ler o artigo torne-se assinante ou inicie sessão.


Contacte-nos através: 292 292 815.
71
Outros Artigos de Opinião
"A propósito das «causas profundas» da ascensão do…"
Carlos Frayão

REFLEXOS DO QUOTIDIANO
.
"Compromisso Comunitário: Processos de Reabilitaçã…"
João Garcia

AO ABRIR DA MANHÃ
.
"O meu programa de Governo"
Carlos Faria

REFLEXOS DO QUOTIDIANO
.
"Carta de uma desconhecida (III)"
Jorge Moreira Leonardo

FOLHETIM
.
"Desafios da Democracia Portuguesa: Crise Política…"
João Garcia

AO ABRIR DA MANHÃ
.
"Carta de uma desconhecida (II)"
Jorge Moreira Leonardo

FOLHETIM
.
"Desenganem-se: a democracia não está garantida!"
Carlos Frayão

REFLEXOS DO QUOTIDIANO
.
"Não se pode enganar o povo"
Rui Gonçalves

A ABRIR
.
"Desafios e Oportunidades"
João Garcia

AO ABRIR DA MANHÃ
.
"XIV Governo Regional: uma aposta na continuidade?"
Carlos Faria

REFLEXOS DO QUOTIDIANO
.