Jorge Moreira Leonardo

O Crime da Rua Direita (V)

17 de Maio de 2023


Quando o filho (que se mostrou deveras intrigado com a visita da polícia), os convidou a entrar, o ambiente que encontraram era de extrema tristeza. A viúva, chegada há pouco do hospital, estava sentada num sofá e a nora, a seu lado, com um braço sobre o ombro tentava em vão confortá-la. Ao contrário do gerente, o chefe manteve o sangue frio e, como já tinha feito com o filho, apresentou condolências às duas. Depois informou que, quando surgia uma morte naquelas circunstâncias a Lei exigia que se esgotassem todas as dúvidas sobre a hipótese de ter origem criminosa o que provocou nos familiares uma reacção em uníssono: - Crime?!!! Por isso - continuou imperturbável - apesar das tristes circunstâncias, era forçado a fazer algumas perguntas. Se a vítima nos últimos dias tinha tido algum comportamento estranho ou se haveria alguém que o odiasse tanto a ponto de praticar semelhante crime. Quer a viúva quer o filho disseram que desconheciam em absoluto alguém que identificassem como presumível inimigo. Só a viúva adiantou ter-lhe notado alguma preocupação, nos últimos dias, mas que atribuiu a qualquer coisa que estivesse correndo menos bem no escritório, pois ele vivia com grande intensidade os problemas profissionais.

Finalmente abordou o assunto que considerava ser o mais doloroso de todos: havia necessidade de proceder a uma autópsia. A viúva levou a mão à boca, para abafar um grito de horror, decerto provocado pela ideia de imaginar o corpo do marido retalhado e ainda esboçou uma atitude de protesto, mas o filho teve modos de a convencer. Ela então conformada concordou mas pediu para ver o corpo do marido antes. O chefe disse não haver qualquer inconveniente desde que o fizessem com a maior brevidade. Despediram-se, mas o filho fez questão de os acompanhar à porta. Aí, seguro de que não seria ouvido por qualquer dos familiares, perguntou ao Chefe Marques: - O meu pai foi mesmo assassinado? O outro, olhou na direcção do gerente, e, após breve hesitação, abanou a cabeça afirmativamente. A revelação, porém, não pareceu acrescentar maior comoção ao filho.

O interrogatório ao restante pessoal, feito durante a tarde, aconteceu pela seguinte ordem: primeiro o contabilista, segundo o escriturário dactilógrafo e depois o moço que exercia as funções de paquete. Se já estavam chocados com a ideia do suicídio, pior ficaram perante a hipótese de crime. Partilhavam da opinião do gerente quanto a possíveis inimigos da vítima. Todos tinham alibis indestrutíveis e não acrescentaram nada de novo à investigação. Apenas o paquete, e por lhe ter sido pedido que contasse mesmo o que lhe parecesse insignificante, informou que na véspera preparara algumas encomendas postais e, hoje, quando ia prosseguir a tarefa, a caixa com os apetrechos - sinete, lacre, barbante, tesoura e outros - não estava no seu lugar, disso tinha a certeza.

O último foi o caixa e por uma razão justificável: a sua substituição durante as horas de expediente era problemática. Mostrou-se o mais nervoso de todos o que se justificava por se sentir o principal suspeito. Os seus colegas, ao serem interrogados, já deviam ter relatado que ele ficara a sós com o chefe, para conferência do “caixa”. Pelo que, pelo menos no actual estado da investigação, tinha sido a última pessoa a ver a vítima com vida. Confirmou a situação que, aliás, - acrescentou - acontecia com alguma regularidade. Adiantou que tudo tinha decorrido dentro da normalidade e que demorara cerca de 15 minutos. Saiu, por volta das dezassete e vinte, convencido que o chefe o seguiria pouco depois. Achou-o um pouco estranho. Entrou na Pastelaria que ficava defronte do escritório para comprar cigarros e depois foi para casa donde só saiu quando o contabilista lhe telefonou. E por aqui se quedaram os depoimentos dos funcionários. O resultado da autópsia confirmou que a vitima fora violentamente atingida na nuca e, quando foi içada na corda, ou já estava morta ou então num coma tão profundo que lhe evitou as aflições do enforcamento.

As impressões digitais encontradas coincidiam todas com as do pessoal. O exame às fechaduras, feito por um técnico especializado, não revelou o mínimo sinal de terem sido forçadas por gazua ou outra qualquer ferramenta, e estava afastada definitivamente a hipótese de terem sido feitos duplicados das chaves. Os seus utilizadores nunca se separavam delas o tempo suficiente para o permitir.

Os relatórios dos dois polícias encarregados de confirmar os alibis (a quem foi recomendada a maior descrição para os visados não se aperceberem) e de vasculharem a vida dos funcionários não revelaram nada de interessante. Eram todos pessoas de hábitos simples e consentâneos com as suas possibilidades financeiras, excepção feita ao caixa cuja esposa, doméstica, vestia com um grau de luxo um pouco acima do que se supunha serem as possibilidades do casal e era conhecida por ser exigente com o marido. Na Pastelaria confirmaram que ele parara lá apenas o tempo suficiente para adquirir cigarros e até se lembravam da hora (cerca das 17,20) porque ele havia perguntado. Um dos empregados garantiu ter visto a esposa à porta do escritório e, em tom jocoso, acrescentou: - E ela não é para brincadeiras!

Quando o filho (que se mostrou deveras intrigado com a visita da polícia), os convidou a entrar, o ambiente que encontraram era de extrema tristeza. A viúva, chegada há pouco do hospital, estava sentada num sofá e a nora, a seu lado, com um braço sobre o ombro tentava em vão confortá-la. Ao contrário do gerente, o chefe manteve o sangue fr…





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