Jorge Moreira Leonardo

Os Filhos (VI)

27 de Julho de 2022


Em Coimbra gerara poucas amizades e, ainda assim, rigorosamente seleccionadas. O Curso a que se propusera não era para brincadeiras e havia um fosso enorme entre a preparação recebida no Liceu e as exigências duma Universidade. Não queria de forma alguma decepcionar as pessoas que confiaram nas suas capacidades e nem sabia qual seria a reacção da madrinha perante a notícia dum insucesso, principalmente se viesse a saber que ele perdia em paródias o tempo que devia dedicar ao estudo. Não só queria passar todos os exames em primeira época para poder dedicar o tempo de férias à sua amada, como também pretendia obter uma nota que, uma vez de posse do seu diploma, pudesse tirar alguma vantagem no mercado de trabalho. Por outro lado, a agitação estudantil começava a ganhar contornos preocupantes e as primeiras intervenções da polícia eram de molde a recear o pior. É verdade que participou nalgumas festas e até em comícios de natureza política, mas fê-lo sempre na companhia dos amigos que, moderados como ele, eram o seguro garante de que não se veria envolvido em trapalhadas que viessem a prejudicá-lo nos seus estudos.

De entre esse grupo de amigos, nutria uma certa predilecção que, aliás, era seguramente retribuída, pelo Afonso Bernardes, estudante de Medicina. E foi esse amigo que, próximo do Natal, o convidou a passá-lo com a sua família. Ainda vacilou, mas recordava-se quão tristes tinham sido os Natais anteriores - que passara praticamente sozinho - e aceitou. Até porque num telefonema para a Joana - luxo a que não resistia de vez em quando - ela incentivou-o a aceitar, ficando feliz por sabê-lo acompanhado naquela época tão especial. Hoje, maldiz o facto de não ter rejeitado. Partiram, logo no início das férias, para Castelo Branco, onde numa casa solarenga, moravam os pais e os avós maternos do amigo (de ascendência fidalga) e onde, dia após dia, iam chegando os familiares de sorte que, no dia da Consoada, estivesse reunida toda a imensa família. Os últimos a chegar, foram um tio do Bernardes, viúvo, advogado de renome, com escritório em Lisboa, que vinha acompanhado da filha, moça de vinte anos, solteira, e de quem ele, no momento das apresentações, pensou “não és feia nem bonita”. Porém, talvez por ser o único par desirmanado (o amigo já tinha noiva apalavrada e, por sinal, bem interessante) passaram a procurar-se um ao outro e a manter longas conversas e, ou por coincidência ou por instinto, à hora das refeições ficavam sempre lado a lado. Foram esses diálogos que lhe permitiram saber que a mãe morrera há três anos de cancro, quando ela estava a meio do sétimo ano. Quis desistir imediatamente dos estudos para o que, confessou, não tinha grande vocação, mas o pai aconselhou-a a terminar pelo menos o ensino liceal, no que concordou. A sua grande vocação era ser esposa e mãe. E caso ficasse para tia – hipótese que admitiu, sorrindo - herdaria meios de fortuna que lhe permitiriam encarar o futuro sem preocupações. Até porque sabia que o pai, embora relativamente novo – 49 anos – nem admitia falar de um novo casamento, que consideraria uma afronta à memória da esposa que tanto amara. Contou-lhe ainda que mantivera alguns namoros efémeros e aquele que lhe parecia mais duradouro, o rapaz acabou por decepcioná-la. Ele também lhe contou algumas coisas acerca de si mas não mencionou o seu namoro com a Joana. Ainda hoje se interroga se, pelo menos a nível de subconsciente, já não estaria arquitectando o que, afinal, veio a acontecer.           

Findo o Natal e, à despedida, Sofia – assim se chamava - manifestou-lhe o desejo de que a separação não significasse o fim da amizade iniciada e se, um dia, ele fosse a Lisboa, teria muito gosto em recebê-lo na sua casa, convite secundado pelo pai, o que, no entanto, assumiu apenas como uma gentileza condescendente, própria de gente bem. Porém, a partir daí, não raro se surpreendia pensando nela. E, não se apercebendo bem porquê, as cartas para a Joana foram rareando e já não lhe saíam com o mesmo fulgor de outrora. As dela mantinham-se inalteradas e não denotavam qualquer suspeita.

Em Coimbra gerara poucas amizades e, ainda assim, rigorosamente seleccionadas. O Curso a que se propusera não era para brincadeiras e havia um fosso enorme entre a preparação recebida no Liceu e as exigências duma Universidade. Não queria de forma alguma decepcionar as pessoas que confiaram nas suas capacidades e nem sabia qual seria a reacção da …





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