Jorge Moreira Leonardo

Os Filhos (I)

22 de Junho de 2022


Após o jantar e como, aliás, já vinha acontecendo de alguns anos a esta parte, desde que os seus compromissos, principalmente políticos - os profissionais já nem tanto - não o obrigassem a sair, dirigiu-se à biblioteca, sentando-se à secretária. Abriu a gaveta do meio de onde retirou o cachimbo que encheu introduzindo na pequena bolsa de tabaco e, utilizando o indicador direito, calcou-o. De seguida, aguçando a chama do isqueiro, acendeu-o. Apreciou, deliciado, as primeiras fumaças e demorou-se alguns momentos assistindo às estranhas formas que o fumo, caprichosamente, desenhava.

Na sua frente, a pilha de jornais que o proprietário do pequeno quiosque, instalado próximo da sua residência, havia entregue durante a tarde.

Desdobrou-os um a um e, de início, limitou-se a uma breve passagem de olhos pelas primeiras páginas. Sem qualquer excepção, citavam a sua intervenção da véspera na Assembleia da República. Mais entusiastas, por razões óbvias, os jornais simpatizantes dos partidos da Coligação governamental; mais frios, mas igualmente rendidos, os jornais afectos aos diferentes partidos da oposição. Num deles lia-se mesmo em grandes parangonas: a intervenção de Sousa Mendes, líder da bancada do Partido Liberal, deixou sem argumentos todos os líderes da oposição.

“Sousa Mendes”... pensou. Como soavam, hoje, de forma bem diferente, aqueles simples apelidos, tão vulgares, aliás, na terra que o viu nascer: a freguesia das Fontinhas na Ilha Terceira. Demonstração evidente que a harmonia de um nome não depende tanto da sua fonética, como do prestígio da pessoa que o transporta. Ainda se recordava quando, nos primeiros dias após o seu ingresso no Liceu de Angra, o Hugo de Aguiar e Lacerda (mais velho dois anos que o comum dos alunos da turma, pois repetira o exame de admissão e iniciava a repetição do primeiro ano), fidalgote, irónico e pedante, lhe ter dito: - Até pelo nome se vê que és do monte! E, em boa verdade, ele que tinha Francisco como nome próprio, apertado no seu modesto fato de sarja cinzenta, de calças compridas (os meninos da cidade usavam calção e alguns - poucos - à inglesa) mais parecia um futuro trabalhador rural em Domingo de Bodo do que um aluno do Liceu.

Não conseguia também evitar, uma vez por outra, alguma fala à moda do monte, o que divertia os colegas à brava. E, como se tudo isso não bastasse, havia o isolamento a que ficavam sujeitos os moços vindos dos meios rurais, devido à baixa afluência. Os seus estudos, aliás, só foram possíveis pela generosidade de sua madrinha, viúva sem filhos, mas bastante rica e que nutria pelo seu Francisquinho o amor que dedicaria a um filho, se a natureza lho não tivesse negado. Manda a verdade se diga que muito contribuíram as recomendações do professor do Ensino Primário e do Padre Marques, ambos conhecedores da invulgar inteligência do pequeno, que receavam ver desperdiçada em qualquer rude tarefa rural. Se tal não tivesse acontecido, ele, filho dum modesto lavrador, teria seguido o destino de seu irmão, mais velho três anos apenas, que, ainda mal tinha acabado a escola, fora trabalhar com o pai. Embora se deva dizer que o irmão não tinha a mesma vocação para o estudo Foram, assim, de alguma amargura os seus primeiros tempos do Liceu, pois teve de suportar a rejeição dos colegas. Só que a sua cintilante inteligência, associada a uma forte personalidade fê-lo atingir o sucesso, não constituindo qualquer óbice a modéstia do seu nome e apelidos. Hugo, o fidalgote, cuja mediocridade apenas lhe permitiu arrastar-se até ao quinto ano (que teve de repetir) havia de gastar a sua vida, frustrado, agarrado a uma secretária da, então, Junta Geral, onde, mesmo assim, entrara mais pela ressonância do nome (único proveito que daí retirou) e “cunhas” de amigos da família do que pelos próprios méritos.

Mas estava escrito que, nessa noite, não se quedariam por aí as suas recordações desses tempos já bem distantes. Ao retomar a consulta dos jornais, já, então, com intenção mais pormenorizada e selectiva, viu sobre a secretária, isolado e modesto, um exemplar do jornal “A União”, cuja assinatura mantinha como único elo que o ligava à sua terra, a qual não visitava há um ror de anos. Retirou-lhe a cinta que o envolvia e na qual se encontrava o seu endereço e, quando tudo fazia prever um breve olhar ao vetusto vespertino angrense, uma notícia com honras de primeira página, despertou-lhe particular interesse e o rosário das suas recordações havia de lhe ocupar o pensamento, de forma tão absorvente que, se qualquer notícia houve noutros jornais, digna de merecer a sua atenção, foi pura e simplesmente ignorada.

Rezava assim:

 

Dr. José de Mendonça Nunes Ávila

 

No Congresso sobre Cardiologia realizado no decurso da semana passada no auditório da Escola de Enfermagem desta cidade, no qual participaram grandes nomes da especialidade, quer nacionais quer estrangeiros, este nosso conterrâneo foi efusivamente aplaudido pelos comparticipantes mercê do excelente trabalho apresentado.

“A União” apresenta-lhe sinceras felicitações, extensivas a seu pai, José Nunes Ávila, notável comerciante da Praia da Vitória e a sua mãe, D. Joana Cunha de Mendonça Ávila.

 

“Seu pai”... pensou de novo, desta feita, sem poder evitar um sorriso de ironia.

 

Após o jantar e como, aliás, já vinha acontecendo de alguns anos a esta parte, desde que os seus compromissos, principalmente políticos - os profissionais já nem tanto - não o obrigassem a sair, dirigiu-se à biblioteca, sentando-se à secretária. Abriu a gaveta do meio de onde retirou o cachimbo que encheu introduzindo na pequena bol…





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